quinta-feira, 27 de maio de 2010

L'essence

Em defesa da cigarra (por Júlia Pessoa)
Ontem, eu estava trabalhando numa instituição para crianças, e em silêncio, ouvi a educadora contar para as crianças de três anos a famosa história da formiga e da cigarra. Aquela, em que a cigarra canta e a formiga junta comida e no fim, a cigarra vai pedir comida à formiga, e esta dá-lhe um sermão sobre o trabalho em vez do lazer. As crianças, fascinadas, aprendem que o trabalho não só garante uma vida melhor, mas também nos coloca num status moral superior àqueles que não o fazem.
De boas intenções, …
Eu, silenciosa, imigrante recém chegada num país bilíngue, ouvi a história contada no francês com sotaque mediterrâneo, mas impecável da educadora experiente, e me permiti alguns intantes de reflexão.
Ainda não me apresentei : meus amigos, prazer, eu sou a cigarra.
Eu sou a cigarra, que prefere passar por certas privações à deixar de cantar.
Minha história não é especial; sou cantora desde os treze anos, tenho trinta (muito velha pra ser cigarra, eu sei). E posso falar pelos meus amigos artistas, que desde jovens mostraram sua aptidão.
Obviamente, tem cigarras que nascem em famílias de cigarras, ou em famílias de formiga que aceitam e apóiam o seu canto, talvez porque, prematuramente, sua cigarrinha já deu mostras de que não é muito boa com números ou biologia, ou história; ou até o são, mas apenas não conseguem utilizar essas aptidões num mundo mais prático. Ou não querem. E, finalmente, tem aqueles que são seduzidos pelos dotes artísticos de sua cigarrinha, como meu vizinho, um senhor que conheci quando morava num dos edifícios mais pobres da cidade, daqueles que só tem água duas vezes por dia, e você tem que ter reservatórios para poder estocá-la (vida de cigarra…). O coitado perdeu tudo que tinha investindo na « carreira artística » de sua prole - em vão. Mas na história, é omitido qualquer detalhe sobre a cigarra ter família. Aparentemente, artistas não são nem filhos, nem pais, apenas entidades misteriosas, surgidas em circunstâncias misteriosas ou, quando tem familiares que são engenheiros, médicos, administradores ou professores, parecem, obviamente, cigarras adotadas por formigas. E quando são pais? Idéia estranha, imaginar que artistas tenham filhos, esposas, porque esses são papéis que « não combinam » com o estereótipo de drogados e vagabundos. Talvez, filhos desconhecidos fruto de uma noite casual, ou, no caso de uma cigarra mulher, uma gravidez implanejada ou precoce. Mas família, família mesmo, como o que se passa no nosso imaginário popular pai-mãe-prole, hmm, sei não…
Se as cigarras são a espécie do reino animal mais próxima das ovelhas negras (imagem bizarra, mas artista é bizarro mesmo), então nada mais óbvio que ela cante, e cante, até a morte (detalhe que a professora omitiu para as crianças, sobre o triângulo sexo-canto-morte, talvez por ser byroniano demais, ou por ser impróprio para a tenra idade de seus espectadores) enquanto as formigas andam em linha, uma atrás da outra, porque é apenas desse modo que elas sabem andar, no mesmo ritmo, com suas folhas enormes em relação ao seu corpo nas costas. Pergunta para as formigas : Se o movimento é contínuo, se vocês estão sempre seguindo umas às outras, quando é que vocês sabem quando parar? Quando é que vocês sabem que já conseguiram o suficiente para a sua subsistência? Ou será que o importante não é o estoque, mas andar em fila? Cigarras também pagam contas. Algumas tem suas contas pagas por formigas, sejamos francos, pois aparentemente, seu canto não tem grande valor num mercado dominado por seguidores de… de quê, mesmo? De filas! Seguidores de filas. Entretanto, nem toda cigarra tem uma formiga ingênua/crédula/madre-Teresa-de-Calcutá por perto. A solução, então, é optar por uma vida de privações.
Minha primeira casa, em bairro nobre de uma capital brasileira, chegou a ter cinco quartos quando eu morava com meus pais « adotivos », pois meus pais e irmãos são mais pra formiga mesmo (embora meu irmão mais velho é uma formiga verde escura, e toca bateria muito bem). Mas aparentemente, meu sangue de cigarra me foi bastante útil para aprender o quanto dessa vida de conforto eu poderia abdicar. E fui vendo meus irmãos comprarem carros, concluírem mestrados, adquirirem terrenos, montarem sua própria empresa, e vi também seus fracassos e recomeços, e cheguei a me indagar se, na minha teimosia de ser cigarra, eu não estaria andando numa fila.
Nunca tive carro, nem casa própria. Meus mais valiosos bens materiais cabem numa mochila : meu microfone sem fio, um gravador digital recém comprado, meu caderno com novos exercícios de técnicas vocais e esse laptop, que contém várias músicas de todas as partes do mundo. E claro: meus diplomas. Cigarras são inteligentes, e podem aprender muito. Essa cigarra aqui fala três idiomas. O bom é que conhecimento não ocupa espaço na mochila. Cigarras também adoecem. Tive um pólipo nas cordas vocais e tive que reabilitar minha voz para o canto, e sim, estou me acostumando com meu novo timbre. Formigas, conversem com as cigarras e perguntem a elas se elas já tiveram algum problema de lesão por esforço repetitivo. Músicos, artesãos, dançarinos… a lista é longa. Noventa por cento das minhas amigas cigarras já passaram por isso.
E quantas vezes, ao ouvir uma cigarra cantar, passou pela sua cabeça que, talvez naquele exato momento, ela queria estar calada? Cigarras roucas, que precisam honrar um compromisso para não perder dinheiro nem o « cliente », cantam de todo jeito? Nesses momentos, tenho certeza de que certas cigarras gostariam de poder apresentar uma licença médica para faltar. Mas nós, cigarras, sabemos que este não nos é um direito necessariamente garantido. Pois nem sempre a cigarra canta quando quer; nem o que quer, se quer pagar as contas; muitas vezes, nós cigarras cantamos o que vocês, formigas, nos pedem, pois só nos dão algumas folhas se o nosso canto agradar aos seus ouvidos. Nós, cigarras, gostaríamos de mostrar pra vocês a beleza de cantos novos, mas vocês não nos desafiam… acho que é essa mania de andar em fila… Pois eu gostaria de falar com o primeiro da linha, mas acho que nem vocês sabem quem ele é, só podem no máximo me mostrar quem é a formiga da frente…
Várias cigarras encontram empregos diurnos para poder cantar à noite. Não se surpreendam, portanto, de encontrar, no meio da fila, um bicho verde desajeitado, tentando carregar uma folha do jeito que vocês fazem.
Mas se por acaso ela começar a cantar, deixem que esse canto acolha o seu cansaço, pois a vida precisa desse alento que a arte nos proporciona. Essa é a colaboração das cigarras na nossa sociedade de formigas.
Esse não é o nosso lazer; é o nosso TRABALHO.
*Júlia Pessoa, autora do texto acima, é figurinha já carimbada aqui no blog. É amiga querida das épocas da nada-mole-vida em Recife. Mulher inteligente, louca-sã, professora, aluna, musicista, cigarra e corajosa. Hoje ela anda pelas ruas do Canadá. Quer mais de Júlia? Vá ao "Pensamentos", dia 25/06/2008 e bom proveito!
Música do dia: "Enladeirada - 3 na Massa"
Foto: "...l'essence de la vie...Paris... - Peter M"

Um comentário:

  1. Texto fantásticooooo!!!
    Uma analogia perfeita que nos incumbe a refletir: sou formiga ou cigarra?
    Na ausência de uma resposta concreta e satisfatória, questiono-me com mais uma pergunta: Dá pra ter uma rotina de formiga com um espírito de cigarra, ou é querer demais?

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